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Portugal com desperdício crónico de água na rede de distribuição

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Como país, desperdiçamos menos água nas condutas e nos ramais de distribuição. Mas não é o caso de soltar foguetes. As médias, como sabemos, prestam-se a iludir realidades concretas. Se há 161 municípios, dos 278 do Continente, que, entre 2021 e 2022, segundo o mais recente relatório da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), passaram a acusar menos perdas reais de água, 87 conheceram a tendência inversa. Acresce que 20 municípios não forneceram informação ao regulador. Só podemos, por isso, supor que as ineficiências sejam superiores. Em dez, ainda não existem dados que permitam a comparação entre 2022 e 2021.

Mas há mais razões para que os foguetes estejam fora de questão. A primeira: em 2022, desperdiçámos mais de 162 milhões de metros cúbicos de água já tratada, e paga, que não foi distribuída aos consumidores. Em euros, são 88 milhões de euros em água não faturada. Se quisermos aprofundar o cálculo, os últimos dez anos levaram à evaporação de cerca de 840 milhões de euros, valor calculado por baixo. Nem todas as entidades gestoras reportam dados à ERSAR, pelo que só se pode supor, de novo, que as ineficiências sejam superiores. Estes 840 milhões chegariam para cobrir mais de 30% do investimento para renovar condutas e ramais envelhecidos. Não é pouca coisa.

Outra razão prende-se com a forma como foram obtidas as reduções. Existem truques técnicos, como diminuir a pressão da água nas condutas, mas só uma via é sustentável no longo prazo: a renovação das infraestruturas. E sabemos que 172 municípios têm a rede envelhecida, enquanto 31 devolveram silêncio ao regulador, adivinhando-se uma ampliação dos números.

A DECO PROteste espera que o Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030 (PENSAARP 2030), aprovado em fevereiro, venha a ser um ponto de inflexão quanto à renovação de condutas e ramais. Até porque o programa do mais recente Governo prevê novos instrumentos de financiamento para esse efeito.

Conheça o volume das perdas de água no seu concelho

Menos de metade dos municípios com bom desempenho

O ano de 2022 trouxe boas notícias sobre 161 municípios continentais, que perfazem 58% dos 278 totais, os quais registaram menos perdas de água face ao ano anterior. O destaque vai para Alcácer do Sal, Anadia, Barrancos, Barreiro, Cadaval, Cuba, Macedo de Cavaleiros, Palmela, Penedono, São João da Pesqueira e Vila de Rei, que conseguiram uma redução superior a 40%, ainda que, por vezes, graças à quebra do nível de atividade. Por outras palavras: alguns, face ao ano anterior, compraram menos 20 a 25% de água às empresas que a captam, ditas entidades em alta.

As notícias foram as inversas em 87 municípios, onde aumentou o volume do desperdício, um cenário potencialmente agravado por mais 30 que ou não reportaram dados ao regulador, ou não têm informações que permitam uma análise evolutiva. Por exemplo, as Águas do Alto Alentejo ainda não conseguem gerar dados para analisar a evolução, considerando a recente agregação dos dez municípios sob a sua alçada.

Mas, ainda que importantes, estes números sobre aumentos e reduções de perdas não refletem o desempenho dos concelhos. Ora, dos 278 municípios, 122 – menos de metade – foram bem classificados pela ERSAR no indicador de perdas reais de água em 2022. Significa que ficaram aquém de 100 litros por ramal ao dia, no caso de redes com mais de 20 quilómetros, ou de três metros cúbicos por quilómetro ao dia, tratando-se de sistemas mais pequenos.

Já em 74 concelhos, as perdas atingiram níveis insatisfatórios, ou seja, passaram dos 150 litros por ramal ao dia, no caso de redes com mais de 20 quilómetros, ou dos cinco metros cúbicos por quilómetro, em sistemas menos extensos.

De onde vêm as perdas de água?

O relatório da ERSAR não deixa dúvidas: o envelhecimento de ramais e condutas leva a maior quota de responsabilidade quanto a perdas reais de água. São 62% os municípios do Continente com a rede a precisar de renovação – o que nos deixa concluir que a maior parte do território nacional precisa de investir, e muito.

Entre 2018 e 2022, ano a que reporta o mais recente estudo da ERSAR, as condutas envelhecidas, com mais de dez anos, não foram objeto de atenção em 70% dos concelhos. Mais: em 194 municípios, a reabilitação geral anual é inferior a 0,8% da rede envelhecida, quando deveria andar pelos 1,5 a 4 por cento. E, em 12 municípios, não chega sequer a haver informação, o que tão-pouco augura algo de bom no que se refere à prestação de um serviço de qualidade.

Quais são os municípios que mais reabilitam?

À cabeça dos municípios com percentagens de reabilitação da rede envelhecida mais elevadas, posicionam-se Mora, no distrito de Évora, e a Marinha Grande, com valores respetivos de 3,4% e 3,2 por cento. Trata-se, porém, de um município pequeno e de outro médio, com redes pouco extensas.

Em valores absolutos, as Águas do Alto Minho, que operam em Arcos de Valdevez, Paredes de Coura, Ponte de Lima, Valença e Viana do Castelo, ficam no topo da reabilitação, tendo intervindo em quase 212 quilómetros de condutas com mais de dez anos, nos cinco concelhos, entre 2018 e 2022. Mas, na prática, são apenas 1,3% ao ano, o que corresponde a um nível mediano de renovação.

A Empresa Intermunicipal de Ambiente do Pinhal Interior (APIN), que agrega 11 municípios (ver quadro), reabilitou 181 quilómetros no referido período de cinco anos. Face à extensão de rede envelhecida, o patamar está nos 2% ao ano, podendo ser considerado bom. Por sua vez, as Águas da Região de Aveiro, com dez municípios a cargo, tiveram intervenção em quase 103 quilómetros no período, ou seja, uns insatisfatórios 0,7 por cento.

Rede envelhecida, perdas de água elevadas

Foram 2628 os quilómetros de rede reabilitada entre 2018 e 2022, uma gota no oceano, se considerarmos um universo de 93 754 quilómetros de ramais e condutas com mais de dez anos que atravessam Portugal.

O investimento necessário não é pequeno. Mas é necessário, pois há uma tendência que não pode ser ignorada: 53 dos 172 concelhos com rede envelhecida registaram perdas de água elevadas, consideradas insatisfatórias pela ERSAR. Neste grupo de 53 municípios, a reabilitação está em níveis igualmente insatisfatórios em 30, sendo que dois nem sequer mostraram capacidade de reportar dados sobre as suas próprias redes.

Não obstante o envelhecimento das condutas, a frequência de avarias, as quais têm potencial para gerar perdas e falhas de abastecimento, ainda não é gravosa. A partir das informações fornecidas pelas entidades gestoras à ERSAR, a avaliação deste indicador é boa em 140 municípios, enquanto, em 86, se fica por um patamar mediano.

Já nos 44 concelhos com uma ocorrência de avarias mais elevada, pode estar em causa uma perda de qualidade do serviço prestado ao consumidor. O mesmo poderá ser dito a propósito dos oito que não transmitiram à ERSAR informação que permitisse a avaliação.

Plano estratégico aponta falhas do sistema

Os dados mostram que Portugal padece de um mal crónico no sistema de distribuição de água para consumo humano. Com o objetivo de inverter este estado de coisas, foi aprovado em fevereiro último o Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030 (PENSAARP 2030), que escrutina os problemas de fundo do setor e traça as grandes linhas orientadoras para eliminá-los até 2030. Algumas coincidem com as reivindicações da DECO PROteste.

A este diagnóstico não escapou algo a que a organização de consumidores aponta o dedo desde sempre: a fragmentação nos serviços de abastecimento de água, com tarifários diferentes consoante o concelho. As grandes assimetrias no setor, com entidades gestoras a várias velocidades e uma tendência para que o fosso se aprofunde, ficaram também sublinhadas no documento. Idem para a dificuldade na agregação de entidades de pequena dimensão, dada a complexidade dos processos.

Ao nível da gestão, o plano estratégico denuncia o insuficiente conhecimento das entidades gestoras sobre o estado das infraestruturas na sua alçada. Soma-se aqui a ineficiente gestão dos ramais e das condutas que se estão a degradar, a qual pode originar, entre outros problemas, perdas de água e falhas no serviço. Não será, por isso, de espantar que o plano estratégico destaque a necessidade de melhorar a aplicação dos instrumentos legislativos.

Setenta medidas são avançadas para inverter o cenário deficitário. Dez são mesmo consideradas prioritárias, e visam a sustentabilidade das infraestruturas e das entidades gestoras ao nível económico, bem como a eficiência na aplicação de recursos financeiros.

E, para aferir o cumprimento dos objetivos, foram definidos vários critérios, cada qual com a sua escala de medição. Ao olharmos para o desempenho atual do sistema, concluímos que muito trabalho há a fazer até 2030. Para prová-lo, um número basta. A poucos anos do objetivo de uma reabilitação anual entre 1,5 e 4% das condutas envelhecidas, não vamos além de uns meros 0,6 por cento.

Como estávamos em 2022 face às metas?

Embora o PENSAARP 2030 vise a redução das perdas até 2030, são já monitorizados vários indicadores. Quatro dos que mais impacto têm na sustentabilidade das infraestruturas mostram que há muito trabalho a fazer.

Reabilitação anual de condutas

O objetivo é uma prática contínua de reabilitação, para assegurar a gradual renovação das condutas e uma idade média da rede que seja aceitável. Com uma média de reabilitação de 0,6% do total da rede envelhecida, quando deveríamos estar entre os 1,5% e os 4%, ficamos muito aquém da meta, ainda que alguns concelhos atinjam percentagens superiores e já cumpram este critério.

Índice de conhecimento infraestrutural das entidades gestoras

Reflete o conhecimento que a entidade gestora detém sobre as infraestruturas a seu cargo (por exemplo, planta da sua localização, dimensões, materiais e idade). O índice resulta da soma da pontuação atribuída a vários parâmetros, numa escala de 0 a 200 pontos, sendo a marca dos 195 o objetivo em 2030. Portugal ainda está longe da meta, com 151.

Índice de gestão patrimonial de infraestruturas

Corresponde à soma de pontos atribuídos a vários critérios relacionados com a gestão das infraestruturas, como planeamento da manutenção e da reabilitação. Também neste caso a escala varia entre 0 e 200 pontos, sendo que a meta é de 175. Em 2022, os 71 pontos mostram que o incumprimento era mais expressivo ainda.

Índice de valor da infraestrutura

Trata-se do rácio entre o valor atual da rede e o valor de substituição num dado ano (neste caso, 2022). O valor médio atingido, de 0,35 (deveria estar entre 0,40 e 0,60), não é representativo, pois 29 entidades gestoras não reportaram os dados à ERSAR. Ainda assim, mostra a elevada necessidade de financiamento para reabilitar condutas com mais de dez anos.

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