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Seca no Algarve: aumento de preços é injusto e envolve conflitos de interesses

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Barragem do Algarve com pouca água
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Em finais de junho, a DECO PROteste publicou um estudo que alertava para a situação de risco do Algarve, região que combina secas prolongadas com elevadas perdas de água nas redes de abastecimento e estratosféricos picos de consumo durante o verão resultantes da pressão turística.

Quase em simultâneo, a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) emitiu um conjunto de propostas, dando resposta à resolução do Conselho de Ministros de 21 de junho, com o objetivo anunciado de mitigar os efeitos daqueles três fatores negativos. A organização de consumidores aplaude a maioria destas medidas, por demais óbvias, como a proibição do uso de água potável em fontes ornamentais, lavagem de veículos automóveis ou espaços públicos, e rega de jardins. Idem para as medidas dirigidas ao turismo, como as restrições ao nível da rega de campos de golfe e da renovação da água das piscinas.

Mas a DECO PROteste continua a opor-se firmemente ao aumento de preços como forma de responder à seca, ainda que a título temporário, proposto pela ERSAR e apoiado pelo Governo, sobretudo enquanto as entidades gestoras não resolverem as suas ineficiências, responsáveis pelo desperdício de mais de 15 milhões de metros cúbicos de água só em 2022, um valor equivalente a 49% do volume faturado às famílias do Algarve nesse ano. Dito de outra forma, a água perdida pela rede teria sido suficiente para colmatar metade das necessidades dos agregados em 2022.

Conheça o volume das perdas de água no seu concelho

Na base deste cenário insustentável está a falta de renovação de redes envelhecidas, que, todos os anos, deixam escapar largos milhões de euros em água potável. O esforço associado à conservação da água é coletivo. Não pode estar só do lado das famílias. O reforço orçamental para reduzir perdas e reabilitar condutas, anunciado pelo Governo e pela Associação de Municípios do Algarve (AMAL) após a comunicação da DECO PROteste, deve ser executado por quem distribui a água.

O que determinou o Governo

O Conselho de Ministros aprovou um modelo de gestão da água reforçado pela recomendação da ERSAR. Contempla a contínua monitorização da situação, com base nos dados de consumo e das disponibilidades hídricas nas albufeiras e nos lençóis freáticos. Defende ainda a transparente comunicação à comunidade e o reforço da fiscalização das medidas para conter o consumo – e disponibiliza apoios financeiros. Uma reavaliação está prevista para agosto.

Entre outras medidas, o Governo determinou que cada município não pode receber mais de 90% do volume de água consumido no período homólogo de 2023. As exceções são os concelhos de Lagoa, Olhão e São Brás de Alportel, que, em 2023, tiveram reduções no consumo face a 2022. Assim, a referência aqui considerada é a média do consumo entre 2022 e 2023.

Propôs também criar uma componente tarifária adicional, a pagar à concessionária Águas do Algarve, pelas entidades distribuidoras, seja a câmara ou uma empresa municipal. Destinado a financiar medidas que visem o aumento da eficiência hídrica e o reforço da resiliência dos sistemas de abastecimento na região, este extra é aplicado a cada dois meses e corresponde a:

  • 10% da tarifa normal, se o consumo de água no município exceder 5% do volume de referência;

  • 20% da tarifa, para consumos superiores a 5% e iguais ou inferiores a 10% do volume de referência;

  • 50% da tarifa, para consumos superiores a 10% do volume de referência.

Medidas para a população em geral

Em linha com as reivindicações da DECO PROteste, várias medidas estão em vigor desde 21 de junho, mantendo-se até ao fim do ano de 2024. Vejamos as mais significativas.

  • Pressão da água: reduzir a pressão na rede até aos mínimos que não afetem a qualidade do serviço.

  • Rega de jardins e relvados, públicos ou privados: suspender o uso de água da rede, exceto para assegurar a sobrevivência de árvores autóctones ou de caráter singular ou monumental, e limitar a que tenha outras origens naturais. Sempre que possível, deve haver o recurso a águas reutilizadas (por exemplo, residuais tratadas, mas não potáveis). Em qualquer dos casos, a rega deve ocorrer entre as 20h00 e as 8h00.

  • Fontes ornamentais e lavagem de edifícios e espaços públicos: proibir o uso de água da rede ou de outras origens naturais em fontes ornamentais e na lavagem de pavimentos, logradouros, paredes e telhados, exceto na conservação de edifícios. Sempre que possível, deve haver o recurso a água reutilizada para lavar ruas, pavimentos, veículos, equipamentos de entidades públicas e contentores de lixo. A periodicidade da lavagem deve ser reduzida.

  • Construção de estradas: proibir o uso de água da rede e de outras origens naturais para compactação de vias rodoviárias (caminhos ou base de estradas) e controlo de poeiras de caminhos em obras públicas ou privadas, sempre que esteja disponível água reutilizada a uma distância de cinco quilómetros.

  • Lavagem de veículos a motor: suspender o uso de água da rede para lavar ligeiros ou pesados, motociclos, quadriciclos, trotinetes ou outros, exceto em estabelecimentos licenciados e que tenham sistemas de recirculação de água. Fora destes locais, a tarefa é permitida com esponja e balde.

  • Segundo contador: suspender o fornecimento a contadores associados a usos que não gerem águas residuais (vulgo “contadores de rega”).

  • Alerta permanente: criar ou reforçar piquetes de emergência para monitorizar e reparar ruturas nas redes, disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana.

Medidas para o turismo

Responsável pela enorme procura de água durante o verão, o setor do turismo recebeu um pacote de medidas específicas, com que a DECO PROteste também genericamente concorda.

  • Rega de campos de golfe: suspender o uso de água da rede e limitar o recurso à água natural superficial, dependendo das disponibilidades nas barragens da região.

  • Rega de espaços verdes: os empreendimentos turísticos podem usar água da rede em espaços verdes essenciais às atividades ao ar livre, desde que demonstrem que o consumo acumulado entre janeiro e maio de 2024 foi reduzido em, pelo menos, 13% face ao período homólogo de 2023, devendo este corte manter-se nos meses seguintes.

  • Piscinas: reduzir a periodicidade da renovação da água, sem comprometer a saúde pública.

  • Chuveiros e lava-pés: encerrar, exceto se usarem apenas água do mar.

  • Selo de eficiência hídrica: atribuir o selo Save Water aos alojamentos, às empresas de aluguer de automóveis e aos estabelecimentos de animação turística e restauração que provem reduzir o consumo de água.

Medidas para a agricultura

Entre outras medidas, foram contempladas as seguintes:

  • fixação de volumes de água para a rega de sobrevivência de culturas autóctones;

  • aproveitamento da barragem do Arade para a rega, mediante controlo das disponibilidades;

  • autorização de captações subterrâneas nas regiões do Sotavento e do Alvor.

A posição da DECO PROteste

A DECO PROteste concorda com a maioria das medidas aprovadas, mas rejeita os aumentos tarifários, a aplicar às famílias, com o objetivo de enfrentar os efeitos da seca. E critica alguns pontos, que poderiam ter sido acautelados de forma a tornar o regulamento mais justo.

Meios de informação insuficientes

O formato proposto para a prestação de informação às populações é insuficiente. Alertas e outras eventuais restrições no uso da água devem ser publicitados nos sites das entidades gestoras e/ou dos municípios, diz a ERSAR em resposta às medidas do Governo. A DECO PROteste considera que a informação deveria ser ainda comunicada junto com a fatura da água. Outra excelente opção seriam os avisos em espaços de grande afluência dos cidadãos.

Segundo contador deveria manter-se com tarifário específico

Outro aspeto criticável prende-se com a suspensão de novos contratos de abastecimento associados a usos que não gerem águas residuais, exceto para assegurar a sobrevivência de árvores, animais e hortas para consumo próprio. Segundo a DECO PROteste, teria sido prudente manter o segundo contador para consumidores domésticos, mas com um tarifário específico.

Mantendo-se o segundo contador, seria possível conhecer e separar os volumes para consumo humano e os consumos secundários, como enchimento de piscinas ou regas. Em resultado, seria possível propor medidas específicas de conservação da água.

Governo não refere a obrigação de reabilitar a rede

O Governo determinou que as entidades gestoras são obrigadas a reduzir a pressão da água na rede, a reforçar o controlo das fugas e a monitorizar e reparar roturas. Até aqui, tudo bem. Mas o Executivo perdeu uma oportunidade de ouro para reforçar a obrigatoriedade de as entidades gestoras reabilitarem as condutas envelhecidas.

É certo que houve reforço de financiamento, seja por via do Plano de Recuperação e Resiliência, seja do Fundo Ambiental, ou ainda de outros instrumentos de desenvolvimento. Mas o Governo não sublinhou a necessidade da reabilitação. Face ao envelhecimento das infraestruturas em 14 dos 16 municípios do Algarve, trata-se mesmo de uma urgência.

Em junho, nove municípios apresentaram candidaturas para a renovação de redes com elevados níveis de perdas de água. Já no início de julho, abriu novo aviso para apoiar investimentos que visam reduzir as perdas no setor urbano. Há que agir no curto prazo, para que estas perdas, já num nível absurdo, não piorem ainda mais numa região que desperdiça a água que não tem.

Subida de preços para baixos escalões é ineficaz e injusta

Neste cenário, a DECO PROteste não pode concordar com os aumentos tarifários. Trata-se de uma forma reativa e fácil de responder a um problema estrutural e complexo. Consumos até 15 metros cúbicos mensais enquadram-se naquilo que a Organização Mundial da Saúde considera o suficiente para colmatar as necessidades básicas de uma família com até quatro elementos. Não é desperdício.

Consumos acima dos 15 metros cúbicos tão-pouco são desperdício no caso de famílias numerosas. Ora, em dois municípios algarvios, ainda não existiam, no início deste ano, tarifários específicos para estes agregados, enquanto, noutros, os critérios de acesso são demasiado restritivos, mesmo para famílias com mais de quatro elementos.

Tendo em conta que os preços já são tão diferentes nos 16 concelhos da região, uma subida sem harmonização tarifária aprofundaria o fosso entre os cidadãos, que devem receber tratamento equitativo no acesso a um bem escasso, mas vital. Trata-se de um absurdo social propor aumentos de preços para reduzir o consumo das famílias, sublinhe-se novamente, numa região onde as entidades gestoras são responsáveis por elevadas perdas, e onde a procura no verão dispara devido ao turismo.

Dito isto, campanhas com informação sobre formas práticas de reduzir o consumo no segmento doméstico são imperativas, porque têm efeitos a longo prazo. Já os aumentos de preços, para escalões de consumo mais baixos, num setor de monopólio natural, são medidas pontuais, que não mudam mentalidades e, por isso, pouca eficácia têm.

Conflito de interesses na subida de preços e aplicação de sanções

As novas regras dizem que pode haver monitorização dos consumos e fiscalização em qualquer ponto dos sistemas de distribuição predial, com sanções para os utilizadores e para as entidades gestoras.

Esta medida envolve, no entanto, um conflito de interesses, pois as entidades gestoras, que adaptam e aprovam as regras em cada município, beneficiam diretamente dos aumentos de preços aplicados aos consumidores domésticos e têm liberdade para fixar os valores das contraordenações em caso de incumprimento.

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