De um lado, perfilam‑se os que alegam serem muito baixas as tarifas dos serviços de água, saneamento e resíduos, advogando, por isso, um aumento generalizado. Do outro, alinham‑se os que defendem que as famílias não podem pagar mais. Mas, afinal, quem tem razão? O serviço é caro ou barato? A resposta: depende, e de numerosos fatores.
Dispersão tarifária continua a discriminar as famílias
Entra ano e sai ano, e a disparidade tarifária continua a discriminar os portugueses consoante a região onde habitam. Vejamos alguns números intuitivos. Perante um gasto anual de 120 metros cúbicos de água, uma família que habite num dos municípios agregados nas Águas do Planalto (Carregal do Sal, Mortágua, Santa Comba Dão, Tábua e Tondela) paga 270,50 euros pelo abastecimento, enquanto um agregado da Moita tem um encargo de 44,84 euros, seis vezes inferior (1:6). O Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais (PENSAAR 2030) traça, como meta, uma diminuição do fosso nacional, para 1:5, no ano que vem, e para 1:3, em 2030. Mas como se fará a aproximação: devem ser os moitenses a pagar mais ou os seus concidadãos mais a norte a beneficiar de um corte na fatura?
No saneamento, a dispersão agrava‑se para um rácio de 1:13. É esta a distância entre os 15 euros que paga uma família de Castro Daire, considerando o tal gasto de 120 metros cúbicos anuais, e os 195,32 euros imputados a um agregado de Penafiel. O PENSAARP 2030 fixa uma meta de 1:10 para 2026 e de 1:3 para 2030. Pergunta-se de novo: como se processará a aproximação?
Sem metas indicadas no PENSAARP 2030, o serviço de resíduos tem como realidade um rácio ainda menos favorável, de 1:15, ao considerarmos o gasto de 120 metros cúbicos anuais. O valor mais baixo cobrado é de 12 euros, na Chamusca, e o mais elevado, de 180,01 euros, em Vila Nova de Gaia.
Preços indexados ao consumo da água
Pagar consoante o que se gasta é um princípio que, em análise superficial, parece justo. Mas a progressão não é linear. Muito pelo contrário. Não é incomum os municípios aplicarem uma tarifa mais baixa quando o gasto é mais reduzido, e penalizarem o consumidor quando supera certo limiar.
Exemplos não faltam. Veja‑se o caso do Fundão, onde o custo anual é de 217,46 euros para quem gasta 10 metros cúbicos de água ao mês. Sobe para um total anual de 387,64 euros, se forem gastos mais cinco metros cúbicos mensais. Santa Maria da Feira é outro caso: os valores são de 261,68 e 434,19 euros para estes cenários.
Não se disputa a necessidade de fomentar um consumo responsável de um bem precioso como a água. Todavia, um gasto de 180 metros cúbicos ao ano, bastante penalizado em alguns concelhos, é o volume adequado para uma família de quatro elementos satisfazer, sem desperdício, as suas necessidades. Daqui se conclui que as noções de caro ou barato podem variar até dentro do mesmo município, dependentes que estão do consumo.
O gasto de água é, de facto, central na estrutura dos preços. Independentemente das regras de cálculo, até faz sentido que assim seja nos serviços de abastecimento e saneamento. Mas é destituído de racionalidade nos resíduos. Sim, o que as famílias pagam pela recolha do "lixo" está relacionado com a água que gastam, um claro desincentivo à separação de resíduos, pois o tarifário não compensa quem o faz.
Há anos que a DECO PROteste defende um tarifário que esteja subordinado não à água, mas à parcela de resíduos indiferenciados, beneficiando quem separa. Esta possibilidade está já prevista, mas só será obrigatória em 2030.
Entretanto, dos 278 municípios do Continente, 237 continuam a indexar o preço ao gasto de água. Apenas seis praticam um tarifário em função da separação de resíduos, dito PAYT (pay as you throw). Mas admitem a cobrança conforme o consumo de água em zonas sem o sistema PAYT. Em 23 concelhos, o custo é fixo, qualquer que seja o gasto, a localização e o tipo de recolha. Há dois que oferecem o serviço e, nos demais, o preço depende de fatores como a dimensão da habitação e o tipo das recolhas.
Aproximação de preços deve considerar realidade de cada município
Os tarifários visam gerar rendimento para as entidades gestoras cobrirem os seus encargos e investirem na melhoria dos serviços (por exemplo, na conservação de infraestruturas). Mas será que os preços são de molde a garantirem este duplo desígnio?
Os estudos da DECO PROteste permitem concluir que as entidades com os tarifários mais elevados no abastecimento aumentam os preços todos os anos e, com frequência, acima da inflação. É o caso dos cinco que pertencem às Águas do Planalto: 120 metros cúbicos custavam 220,83 euros em 2022, 247,11 euros em 2023, 254,29 euros em 2024 e, agora, em 2025, 270,50 euros. Em Santa Maria da Feira, o movimento ascendente tem também sido uma constante: 220,15 euros em 2022, 242,88 euros em 2023, 252,27 euros em 2024 e 261,68 euros em 2025.
Analisada a cobertura de custos das entidades a partir dos dados da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), já no ano de 2022, em 111 dos 278 municípios continentais, os preços superavam os custos com a atividade. Daqueles, só oito haviam obtido do regulador boa avaliação na reabilitação de condutas, um investimento que permite reduzir as perdas de água na rede, cujo custo pode acabar refletido na fatura das famílias.
Ora, em 2023, subiu para 124 o número de municípios com cobertura de custos acima de 100% no abastecimento, dos quais 29 superaram mesmo os 120 por cento. Incluem-se neste grupo os municípios de Ourém (125%), das Águas do Planalto (133%), da Covilhã (139%) e de Santa Maria da Feira (182 por cento). Abaixo da taxa de cobertura de 100% ficaram, nesse ano de 2023, 135 concelhos.
Aqui chegados, é ponto assente que as tarifas são muito díspares e que a sua aplicação depende do gasto de água, numa progressão que não é linear. Mas continua a não resultar claro se os serviços são caros ou baratos e, assim, se deve ser aliviada ou incrementada a fatura das famílias. Mais: percebe‑se que, a um preço mais elevado, nem sempre equivale um serviço de melhor qualidade, com investimento na reabilitação de infraestruturas. Aumentar preços para compensar ineficiências do sistema é inaceitável.
Portanto, afirmar que os serviços são caros ou baratos pode render frases de efeito mediático. Mas a desejável redução das assimetrias é um exercício técnico, que tem de levar em conta as realidades de cada município. Não há receitas simples para problemas complexos.
As tarifas devem promover a recuperação parcial dos encargos, mas num cenário de eficiência, tal como preconiza a legislação. Acontece que os custos podem variar bastante. Em meios urbanos, é de esperar que as famílias paguem preços mais reduzidos do que em zonas rurais, dadas as economias de escala que as entidades gestoras podem obter. Pelo contrário, a dispersão da população rural torna mais dispendiosa a instalação da rede, o que pode repercutir‑se no preço.
Também incontornável, no exercício de fixação das tarifas do abastecimento e do saneamento, é analisar as regiões com seca estrutural ou com presença de atividades altamente consumidoras de água, como a agricultura, o turismo e a indústria – caso do Algarve. A escassez de água pode ser uma realidade para a qual as famílias não contribuem maioritariamente. Se fizerem um consumo responsável, não será justo verem subir a fatura.
Contrato de concessão pode prejudicar o interesse público
Outra barreira à definição de tarifas mais equilibradas é a legislação que só permite às entidades que transferem a prestação do serviço para terceiros, em regime de concessão, exigirem a revisão do contrato, se aqueles alcançarem uma rentabilidade acionista superior ao dobro da inicialmente prevista. Por outras palavras, uma câmara municipal que entregue a exploração do serviço a outrem fica amarrada a um contrato de concessão que pode lesar o interesse público, pois fica impedida de negociar preços mais favoráveis. Em 2015, o Tribunal de Contas recomendou que esta obrigatoriedade fosse removida da lei, por constituir um claro favorecimento das entidades concessionárias. Mas nada foi feito.
A DECO PROteste recusa que os custos decorrentes de desequilíbrios contratuais (por exemplo, cobrança de consumos mínimos de água, de caudais excedentários de tratamento de águas residuais ou de valores de reposição do equilíbrio financeiro da concessão no abastecimento de água) sejam pagos pelas famílias. O mesmo vale para outros custos de ineficiência, como os que resultam das perdas de água. As famílias não devem ser penalizadas porque o sistema funciona mal. As entidades gestoras devem garantir‑lhes, isso sim, acessibilidade a um consumo anual até 180 metros cúbicos.
Detendo o monopólio natural de serviços públicos essenciais, as entidades gestoras não devem visar o lucro para distribuir por acionistas. Ao invés, devem prestar um bom serviço com o capital resultante das tarifas, que cobre uma parte daquilo que investiram. Os serviços de água e saneamento têm necessidades de investimento elevadas, mas as maiores fatias podem advir de apoios e outros instrumentos financeiros. Cabe às comissões de acompanhamento das concessões publicarem, de forma transparente e acessível, o relatório anual do trabalho que realizam.
Rumo a preços mais justos?
Cada entidade, sua forma de calcular preços, o que ajuda a eternizar as assimetrias. A DECO PROteste apoia a proposta da ERSAR de que, no abastecimento, o preço cresça em função de quatro escalões de consumo. Apoia também a recomendação do regulador de que, no cálculo do custo do saneamento, seja apenas considerado um valor de 90% da água consumida.
A DECO PROteste aplaude igualmente a alteração legislativa que prevê a cobrança de uma tarifa em função da quantidade de resíduos indiferenciados produzidos, excluindo os que tenham sido separados para reciclagem. No entanto, as entidades gestoras têm de implementar sistemas que permitam às famílias separar resíduos. E, ao dia de hoje, essa parece ser uma realidade distante.
Como a campanha "Lixo não é água" contribuiu para um sistema de faturação mais justo
15 de abril de 2014
Os serviços de gestão de resíduos urbanos começam a considerar o sistema PAYT como uma das fórmulas de cálculo a aplicar. Considerámos que este era o modo mais eficiente e justo de tarifação, mas alertámos que a indexação ao consumo de água não era a mais eficiente, por não haver correlação direta entre o consumo de água e a produção de resíduos.
10 de outubro de 2017
Lançámos a ação “Lixo não é Água” para sensibilizar os consumidores sobre a forma de cálculo dos resíduos sólidos urbanos em função do consumo de água. Procurámos dinamizar o debate nas várias autarquias do País para a criação de um sistema alternativo que valorizasse comportamentos ambientalmente positivos.
janeiro de 2018
Reunimos com as autarquias para antecipar as dificuldades de implementação de um sistema PAYT em Portugal. Reforçámos os objetivos de obrigatoriedade da implementação do PAYT, construção de um cronograma por município e criação de linhas de apoio financeiro.
7 de outubro de 2020
Quatro anos depois, os consumidores continuam a pagar os resíduos em função do consumo de água. Por isso, relançámos a ação “Lixo não é Água”. Reivindicámos a municípios, Parlamento e Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos medidas concretas.
10 de dezembro de 2020
É publicado o Decreto-Lei que torna obrigatória a desindexação das tarifas de resíduos sólidos ao consumo da água. Além da separação, a lei clarifica a obrigatoriedade da aplicação da tarifa em função da quantidade de resíduos recolhidos até julho de 2026.
21 de abril de 2021
A ação “Lixo não é Água” é encerrada com sucesso. Estiveram connosco 27 239 consumidores. Juntos demos o primeiro passo para uma tarifa de resíduos mais amiga do ambiente, com benefício económico para os cidadãos que reciclam.
1 de janeiro de 2024
Entrou em vigor a obrigatoriedade de recolha de biorresíduos em todos os municípios, no âmbito da Diretiva-Quadro dos Resíduos da União Europeia, que estabelece as metas para a reciclagem de resíduos urbanos. Porém, a maioria ainda não dispõe deste tipo de recolha.
26 de março de 2024
É publicado o Decreto-Lei n.º 24/2024, de 26 de março: um retrocesso legislativo. Apenas a partir de 1 de janeiro de 2030 as tarifas de resíduos para o setor doméstico devem deixar de ser indexadas ao consumo de água. Esta decisão dá continuidade à aplicação da tarifa que não reforça os princípios de justiça tarifária.
1 de janeiro de 2030
Data-limite para a adoção de tarifários de resíduos sólidos nos 308 municípios passa para 2030. Alguns concelhos já adotaram parcialmente o sistema PAYT com tarifa em função da quantidade de resíduos indiferenciados produzidos.
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