
O nosso impacto sobre o planeta pode ser equivalente a suprir as necessidades de um organismo de 13 toneladas, diz Miguel Bastos Araújo. O que pode o consumidor fazer para diminuir a sua pegada ecológica? O investigador, prémio Pessoa em 2018, aponta pistas.
Em Portugal, as áreas protegidas estão delimitadas há anos. São suficientes para a preservação da biodiversidade?
A resposta é difícil. Finalmente, temos 23% do território classificado e, de acordo com os compromissos internacionais europeus, temos de os aumentar para 30 por cento. Desses, um terço tem de ser gerido com critérios e objetivos de conservação. Pode haver outro tipo de usos económicos, mas sempre e quando não comprometam esse objetivo. De acordo com as nossas análises, com cerca de 31% do território, e se considerarmos apenas os vertebrados terrestres, conseguimos preservar todas as espécies com cerca de 1000 quilómetros quadrados, no presente e no futuro. O Governo anterior publicou uma resolução que classificava 34% do território. Reclassificou áreas como geoparques ou reservas da biosfera, que não foram classificadas com objetivos de conservação necessariamente, ou com vista a serem áreas protegidas. Houve uma reorganização administrativa sem ter em conta os melhores dados científicos. Podemos ter, então, 34% do território que não cumprem as metas de biodiversidade em vez de 30% que as cumprem, com critérios objetivos. Temos o problema dos 10% de conservação estrita – no nosso território não é fácil, porque temos cerca de 97% do País na mão de privados. Não é que os privados não possam fazer conservação. Possivelmente, até os melhores exemplos de conservação são em propriedades privadas...
Por exemplo?
ONG que compram áreas e que as gerem com objetivos de conservação e nada mais. A questão é que não se pode obrigar os privados a fazerem uma gestão do bem público sem qualquer tipo de contrapartida.
E como se pode incentivá‑los?
Temos um território 97% privado, e mesmo os 3% de território público não estão necessariamente afetos a uma política de conservação. Existe ambiguidade sobre o que se deve fazer sobre essas pequenas porções de território. É uma anomalia portuguesa termos tão pouco espaço público dedicado à conservação. Em Espanha, grande parte das áreas nacionais protegidas são públicas. Nos EUA são todas públicas. Não há aqui uma questão ideológica. Depois, há a questão prática – o Estado não tem 10%, tem 3% do território, e nem todo é afeto à conservação. É preciso encontrar mecanismos para preservar a natureza. E, para isso, é preciso criar incentivos.
Quais?
Através de benefícios fiscais, por exemplo, o perdão do IMI das propriedades rústicas afetas à conservação. Mas o IMI é tão baixo, que acaba por não funcionar como incentivo. Há, ainda, o financiamento à gestão: da mesma maneira que se paga ao agricultor para ter determinados resultados da gestão do espaço agrícola, pode pagar‑se aos proprietários que façam uma gestão dos espaços naturais. Pode haver incentivos, a um nível mais sofisticado, de criar ou reforçar a marca Portugal Natural – que Portugal seja visto como um sítio para passar férias com uma boa experiência de natureza.
As áreas protegidas são bem geridas? Os incêndios dos últimos anos, cada vez mais intensos, têm‑nas degradado...
Não são, nem podem ser bem geridas. Existe um problema estrutural. A autoridade nacional de conservação, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), não tem capacidade de intervir em território privado. Pode fiscalizar, criar mecanismos de ordenamento, limitar os usos, mas não pode ser gestora desse território. Será necessário clarificar quem faz gestão do território em Portugal. Essa gestão terá de ser contratualizada aos municípios – se tiverem a tutela do território –, a associações ou a cooperativas de proprietários, a ONG... e deve ser feita com base em planos de gestão, em objetivos definidos com um forte envolvimento do ICNF, que também monitoriza e fiscaliza. Haveria uma separação de responsabilidades, e aí o ICNF poderia exercer o seu papel. O que existe é um conflito de interesses evidente.
O biólogo Edward Wilson defendia áreas protegidas quase totalmente vedadas à presença humana. Como seria possível delimitá‑las e geri‑las?
Essa proposta vem na sequência de um livro, Half‑Earth, que ele escreveu aos 87 anos. Morreu aos 92, e, entre a publicação do livro e a sua morte, criou uma fundação, a Half‑Earth, que tem como função continuar a trabalhar esta ideia de conservação de grandes áreas naturais, até chegarmos a metade do planeta. Penso que este objetivo não é para a minha geração, mas para, quem sabe, a geração dos nossos filhos ou netos. Lembro-me, quando estava na faculdade, de que a meta era preservar 10% das áreas terrestres do planeta. Em 2003, fui a uma conferência na África do Sul, onde se anunciou que tínhamos conseguido chegar a esse objetivo. Ampliou‑se o objetivo para o mar também. Entretanto, na última conferência, no ano passado, já se defendeu 30% da terra e do mar. Creio que a batalha desta geração será atingir esses 30% e, sobretudo, que não fiquem só no papel. Há que entender a ideia de Wilson como um lamento. Hoje, com os dados que temos, não é possível preservarmos metade do planeta de uma maneira séria. Na minha vida, já vi passar o objetivo de 10% para 30%, não é totalmente descabelado chegarmos a uma altura em que decidamos ter metade do planeta preservado. Sabendo‑se que não há fronteiras físicas bem delineadas... Estou agora no Japão e um pouco a Sul, no Pacífico, temos uma ilha de plástico com uma superfície de três Franças. E temos outra em formação no Atlântico. Vivemos num mundo interconectado e não há soluções fáceis.
O avanço humano sobre habitats é apontado como fator de risco para novas pandemias?
Existe uma expansão das atividades humanas nas últimas décadas, em particular nos trópicos. A expansão agrícola tem sido feita em países da África Ocidental, nas savanas da África Oriental, no Brasil, nas zonas à volta do Amazonas, no Sudeste Asiático – na Indonésia, as florestas tropicais estão a ser degradadas para as plantações de óleo de palma... E estas zonas de maior degradação coincidem com as áreas onde há maior biodiversidade. Cerca de 17 países, os chamados megadiversos, representam cerca de 70% da biodiversidade do planeta. Quando entramos em territórios com ecossistemas complexos, muito biodiversos, existem os hospedeiros e as doenças que afetam esses animais. Quando esses animais desaparecem, essas bactérias e esses vírus, como qualquer organismo, procuram sobreviver, tentando encontrar um novo hospedeiro. Quanto maior a biomassa disponível dos novos hospedeiros, maior a probabilidade que sejam contagiados e que passem a hospedeiros desses organismos. As doenças que afetam outros animais poderão ser-nos transmitidas, ou aos animais domésticos que consumimos e com que convivemos.
O ritmo da extinção das espécies tem sido acelerado. Que outros riscos podem resultar disso?
A biodiversidade é a biblioteca da vida. É o resultado de milhões de anos de evolução. Que ela desapareça, além de ser uma questão ética para seres, enfim, sofisticados, comporta riscos que não sabemos avaliar bem. Podemos usar a metáfora de um avião em andamento, que é o nosso planeta. E vamos tirando pecinhas, uma porca aqui, um parafuso ali, e o avião continua a andar. Não cai por se tirar uma pecinha. Mas, à medida que vamos tirando mais peças, a probabilidade de o avião cair é maior. Se pensarmos de uma maneira mais abstrata, toda a base da alimentação humana e praticamente toda a energia que usamos vem de fontes orgânicas. E estas são provenientes da biodiversidade. Lembro‑me de uma vez ter falado com um rapaz que me disse que não se importava com as alterações climáticas desde que tivesse internet. As novas gerações parecem, às vezes, pensar que vivemos numa espécie de bolha. É possível, localmente, viver numa bolha. Mas ainda dependemos muito do mundo orgânico. E esse mundo vivo, tal e qual o conhecemos, é mantido pela biodiversidade. Não temos conhecimento para dizer que podemos prescindir desta biodiversidade mas não de outra. Não podemos dizer que esta é que faz com que o avião não caia e a outra podemos deixar ir embora.
Como é que a perda de biodiversidade na Amazónia influencia o bem‑estar em Portugal?
É difícil particularizar. Sabe‑se que a Amazónia, com todo o seu complexo de biodiversidade, é responsável pelo clima que temos. É difícil explicar como é que o desaparecimento de determinada espécie em concreto vai afetar a nossa vida. Temos de ver o planeta como um sistema integrado. A noção de que as nossas ações podem afetar a dinâmica do planeta é recente. Acho que vem da minha geração, começou com o buraco de ozono.
Refere, muitas vezes, que sem biodiversidade não há economia. Tende-se a pensar que a segunda é adversária da primeira, que o crescimento económico se faz à custa da biodiversidade...
A biodiversidade pode pensar-se como o capital natural do planeta. E qualquer atividade económica depende de capital humano, financeiro e natural. As pessoas entendem o capital financeiro e o humano. Sabem que não há nenhuma atividade económica que não tenha capital humano e financeiro. Mas, na verdade, quase todas as atividades humanas, em algum dos elos da cadeia de abastecimento, dependem do capital natural. Não há economia se não houver preservação desse capital. Que, aliás, está estimado pela OCDE em cerca de metade do PIB mundial.
Diz que o nosso impacto no planeta é equivalente a suprir as necessidades de um organismo de 13 toneladas. Como se fossemos 8 mil milhões de King Kongs. Esse ritmo mantém-se?
Sim. Há uma lei da biologia, a lei de Kleper, que relaciona a massa com a energia. Quanto maior o organismo, maior a energia consumida. Está estimado que o consumo humano e industrial médio, ao nível planetário, é equivalente a cerca de 13 toneladas, se fosse transformado em massa. Se considerarmos um cidadão norte-americano como padrão, essas 13 toneladas passariam a mais de 30. Não existe nenhum organismo terrestre com esta massa – o elefante africano tem cerca de dez toneladas -, daí a metáfora do King Kong.
Crise da covid, crise climática e, no topo, a crise da biodiversidade. Esta hierarquia mantém-se?
Infelizmente, sim. Temos novas emergências, decorrentes das guerras e das crises humanitárias que se foram criando desde essa altura, mas as crises estruturais do século são a biodiversidade e o clima. Porque dessas crises depende tudo o resto. Há crises que afetam mais determinados grupos populacionais, mas esta, num primeiro momento, afetará mais as populações mais desfavorecidas, mas, num segundo momento, afetará toda a gente. Veja-se agora na Florida, quando há furacões com aquela intensidade e com o mar a subir seis metros… Os impactos acabam por ser transversais a todas as populações. Estamos a brincar um bocadinho com o fogo.
Enquanto consumidores, o que poderemos fazer, individualmente?
Temos o poder da formiguinha. O poder de todos os dias, quando tomamos decisões sobre o nosso consumo, darmos indicações ao mercado sobre os produtos que queremos e não queremos consumir. É um poder importante, mas, infelizmente, o consumidor não tem em grande medida a informação necessária para tomar as decisões mais racionais. Infelizmente, ainda estamos num patamar onde a racionalidade vai muito pelo preço. A maior parte dos consumidores decide com a carteira. É uma decisão racional. Há duas coisas complementares que se podem fazer. Ter uma política de comércio externo em que se oneram os produtos com impacto ambiental maior e se desoneram os produtos com menor impacto. O produto com um impacto menor no planeta acaba por ficar mais barato e as pessoas escolhem pelo preço, mas também pelo impacto ambiental. E outra questão é ter uma política de certificação consistente, através de vários produtos, sobre o impacto ambiental dos produtos que as pessoas compram. Qual é o impacto ambiental da camisa que se compra, do produto agrícola, do azeite? Essa informação não existe. Não existe um sistema de certificação ambiental da maior parte dos produtos, bens de consumo de primeira prioridade.
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