Depósitos, transferências, pagamentos e levantamentos contam, hoje, a história da nossa vida. Não é que a nossa existência possa caber toda numa conta bancária, mas quase. Essa informação pode ser uma arma eficaz das autoridades para o combate à evasão fiscal ou a operações comerciais ilícitas. Mas a luta pode esbarrar contra um direito básico dos cidadãos numa democracia, o do sigilo sobre os seus rendimentos, que tem dupla face: bancária e fiscal. Conciliar um direito individual fundamental com o bem comum parece ser uma fina barreira para os legisladores atuais. Fique a saber, por isso, que a lei tem pendido para o lado que está mais interessado no coletivo.
O conceito de infração fiscal estendeu-se consideravelmente
Um infrator tanto pode ser um cidadão que tenha oferecido, por transferência bancária, uma soma superior a 500 euros a um familiar, quanto um empresário que tente esconder do Fisco uma soma adicional de vários milhões em santuários fiscais como as offshores.
Para que a Autoridade Tributária e Aduaneira possa levantar o sigilo bancário a um contribuinte basta uma suspeita de prática de crime. Chega, para o caso, que se descubram indícios de que se omita a verdade quando se declara o IRS ou o IRC, por exemplo. Ou que o contribuinte apresente um súbito aumento de património que não justifica – os célebres “sinais exteriores de riqueza”, ou seja, quando os bens adquiridos por particulares ou por empresas são incompatíveis com os rendimentos apresentados. Para ficar na mira das Finanças, basta comprar, por exemplo, um imóvel acima dos 250 mil euros ou um automóvel por mais de 50 mil euros, sem que os rendimentos declarados correspondam à capacidade de comprar bens tão valiosos. Pelo menos, aos olhos do Fisco.
Impostos? Offshore, my dear...
Essa ostentação de rendimentos pode, na verdade, não ser nada quando comparada com o comportamento oposto, que é escondê-los num lugar seguro e por “segurança” — leia-se aqui “fuga aos impostos”. Empresas ou particulares que usem os países que garantem paraísos fiscais para os seus rendimentos também podem ficar na órbita da Autoridade Tributária. O Fisco, de resto, é obrigado, por lei, a informar o Ministério das Finanças sobre os processos em que foi levantado o sigilo bancário dos contribuintes que recorreram a offshores.
Do mesmo modo, outros países que tenham acordos nesse sentido com Portugal podem solicitar às autoridades nacionais que levantem o sigilo bancário de cidadãos estrangeiros residentes no nosso país. Por exemplo, os EUA podem fazê-lo em relação a um cidadão norte-americano que seja titular de depósitos em bancos portugueses, dentro das situações previstas no acordo entre os dois países.
Mas atenção, não é ilegal pôr capitais em offshores, desde que declarados. Aliás, esse rendimento até paga mais imposto do que se estivesse em território nacional. O problema é que, como a realidade tem demonstrado, a lei nem sempre é cumprida. Das duas, uma: ou os capitais saem do País sem (quase) deixar rasto, ou entram em Portugal ao abrigo de programas “extraordinários” de regularização de dívidas fiscais, com desconto nas coimas a pagar e impostos reduzidos. São quase perdões fiscais feitos à medida.
Mas há outras situações em que o sigilo pode ser quebrado. Uma das mais óbvias é a verificação de dívidas à administração fiscal ou à Segurança Social.
Combate sem fim
O raio de ação da Autoridade Tributária aumentou a partir de 2005, num primeiro pacote de medidas legislativas para combater a fraude e a evasão fiscal. Apesar de soltar as rédeas à fiscalização, a lei obriga o Fisco a informar o contribuinte sempre que ordene o levantamento do sigilo bancário. Para se ter uma ideia do resultado, basta olhar para um relatório de 2016 sobre o combate à fraude e evasão fiscais e aduaneiras do Ministério das Finanças: só naquele ano, foi levantado o sigilo bancário a 535 contas por suspeita de irregularidades. O aumento, em relação ao ano anterior ao daquele relatório, era de 15% e a maioria dos visados não se opôs. Só 21 deles tentaram travar as ações em tribunal.
No entanto, não se caiu num jogo de gato e rato em campo aberto. O sigilo bancário e fiscal continua a ser um direito consagrado na lei. Como já vimos, a Autoridade Tributária é obrigada a informar o cidadão ou a empresa de que pretende olhar para a sua conta bancária. E os cidadãos têm direito a reagir, caso não concordem com a bisbilhotice.
Mas, se se mantiver a suspeita, o Fisco pode insistir, acedendo diretamente a documentos bancários. Pode até recorrer – com notificação prévia – aos dados de familiares ou terceiros que se encontrem numa relação especial com o contribuinte: por exemplo, se têm uma empresa ou sociedade ou uma clara partilha de interesses financeiros, como contas comuns, transações frequentes ou relações laborais. Também existe o outro lado da moeda: os profissionais do Fisco e dos bancos incorrem em penas de prisão até um ano ou multa até 240 dias (com o valor diário a variar entre 5 e 500 euros) se quebrarem, extrajudicialmente, o sigilo a que estão obrigados. E se o tiverem feito em proveito próprio, para obter um enriquecimento, a pena pode ser agravada. Podem ser-lhes aplicadas coimas de 3 mil a 1,5 milhões de euros (para pessoas coletivas) e de mil a 500 mil euros, no caso de pessoas singulares, e ainda processos disciplinares. O jogo faz-se, por isso, com alguma luta.
Para saber mais sobre este tema, consulte a revista de janeiro da Proteste Investe.