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Jaime Melo Baptista: "A reutilização da água é mínima em Portugal"

O desinvestimento na reabilitação das condutas é um erro que os operadores dos serviços de água cometem, acusa Jaime Melo Baptista. As perdas de água seriam reduzidas para, pelo menos, 10%, se essa renovação fosse feita. E o preço? A água em Portugal é, em média, muito barata, defende o ex-presidente da ERSAR.

Entrevista_JaimeBaptista

João Ribeiro

Já se ouve falar de seca extrema em quase metade do território. Como estão os recursos hídricos em Portugal?

A questão dos recursos hídricos tem de ser vista como absolutamente essencial para a vida, para a atividade económica e para os sistemas. Mas esses recursos e a sua disponibilidade variam no espaço e no tempo. A variação está a ser agravada pelas alterações climáticas. Mais importante do que nos preocuparmos excessivamente se este ano vai ser mais seco é termos uma gestão de recursos hídricos, e dos serviços associados, que permita muito mais resiliência. Ou seja, estarmos preparados para os fenómenos extremos.

E estamos preparados?

Estamos nesse caminho. É mais uma questão de estarmos a preparar o suficiente ou não. Estes serviços, em qualquer país, vivem três grandes fases temporais. Uma em que não temos serviços e queremos construir. Felizmente, há cem anos, começámos a construir os serviços, mas há países que só mais recentemente estão a fazê-lo. É a fase da quantidade, ou seja, de ter água para a população. Na segunda fase, surge a preocupação com a qualidade da água, com as doenças hídricas. Portugal também já ultrapassou essa fase. A terceira fase é já de excelência. Inclui os serviços que chegam às pessoas, com qualidade, mas com resiliência e capacidade de resistir a situações extremas. E isso implica políticas, medidas e dinheiro. Portugal está no grupo dos mais evoluídos ao nível europeu e mundial. Porquê? Porque construiu as infraestruturas para cobrir a população em termos gerais. Estamos em níveis de abastecimento de água com coberturas na ordem dos 97 por cento. Há 30 anos, o abastecimento andava nos 80 e tal por cento. O objetivo político definido era 95%, e ultrapassámo‑lo um pouco. Tínhamos 50% de água de qualidade, de acordo com a legislação europeia. Ou seja, metade das probabilidades de estar a beber água boa. Hoje, esse valor é de 99 por cento. É uma evolução extraordinária. Mas há fatores e pressões, e desafios, que estão a agravar-se, ou que até nem existiam. Um é o das alterações climáticas: a escassez ou o excesso de água, as inundações.

Vai‑se gerindo as reservas de água...

Em 2005, o ano foi de extrema seca e, no entanto, no Algarve, conseguiu‑se gerir os meses de junho, julho, agosto e setembro, sem os turistas perceberem que havia seca. Estamos a falar de reservas de água, barragens, grandes linhas de transporte de água, que antes não havia no Algarve e que agora há. Há 40 anos, ia à praia, voltava para casa e não tinha água para tomar banho. Hoje, bebe‑se água de alta qualidade, quando antes era salobra. O abastecimento público é prioritário. É o último que pode falhar. Temos fiabilidade instalada, ainda não estamos suficientemente capazes de resistir a tudo, mas vamos nesse sentido. Agora, há passos a dar. Por isso, fala‑se noutras formas de dar resiliência aos sistemas. A dessalinização é uma delas. E a reutilização, em Portugal, ainda com uma expressão mínima. 

 
"Uma política de renovação [das condutas] de 1% a 2% garante que o sistema está sempre em condições. Se não houver, como tem acontecido, surgem problemas e colapsos."

Toda a água residual é tratável?

Toda a água residual que vai para os coletores já é tratada. Simplesmente, estamos a reutilizar 1 a 2 por cento. Podemos aumentar para 10%, 20%, facilmente. Países como Israel andam na ordem dos 80%, 90%; Espanha, salvo erro, está nos 30 ou 40 por cento. Temos um grande potencial. Está previsto, no próximo plano estratégico, essa linha, a da dessalinização e a da reutilização. Já há legislação para as águas residuais reutilizadas.

Em que ponto está a dessalinização?

A dessalinização está incluída na estratégia do setor como uma nova fonte de água. Está prevista no próximo plano estratégico [PENSAARP 2030] essa linha. É algo que está a ser objeto de atenção, nomeadamente com a construção de uma grande dessalinizadora no Algarve, que vai ser a primeira grande unidade do País. Está em estudo. Portugal só tinha, até agora, com alguma relevância, uma única estação dessalinizadora na ilha do Porto Santo, uma ilha árida onde não têm facilidade em ir buscar água a lado nenhum. Tem uma pequena instalação dessalinizadora, que funciona muito bem, e que tem servido extraordinariamente aquela ilha. Agora, vamos fazer uma grande na região do Algarve, porque é a zona onde há maior consumo, devido ao turismo. Há um consumo-base e, depois, nos meses fortes, consumos maiores. Ter uma unidade que ajude a reforçar a resposta a essas situações é importante. E também nos vai permitir, em Portugal, estudar e conhecer melhor as questões da dessalinização, não só do ponto de vista tecnológico, mas também da gestão, de funcionamento, de vantagens e de inconvenientes, de problemas que geram, de custos associados, que nos possam permitir depois generalizar, ou não, a outras regiões do País. O Alentejo, para já, não está incluído nesse projeto, mas está equacionada a possibilidade de vir a ser. É preciso criar toda uma envolvente legal, jurídica, contratual, económica, técnica, que permita que a solução tenha viabilidade e que as pessoas a queiram utilizar.

O que já se sabe em relação ao impacto ambiental da dessalinização?

Na prática, a dessalinização é pegar em água do mar e tirar-lhe o sal. Quando tiramos o sal, ficamos com uma salmoura, que é muito impactante. Não posso atirar salmoura pela borda fora, para o mar, porque altero completamente a salinidade daquela zona, e as espécies, os peixes, morrem ou fogem. Ambientalmente, resolve-se, mas tem custos. Portanto, qual é a melhor solução para ter menor custo e evitar esse impacto ambiental da salmoura e outros problemas? Por exemplo, dessalinizo a água, transformo a água do mar em água potável. Mas é água potável que não tem sais, porque ao retirar os sais associados à salinidade da água, retiro também os outros. Fico com uma água que não é boa para a saúde. Portanto, injetamos novamente alguns sais, não todos, mas alguns de que precisamos, que é o que se faz muitas vezes, ou misturamos aquela água com outra, de outra origem. Isto tem muita complexidade associada. Concordo muito com o que está a ser feito, que é avançar com cautela.

A água que se perde nas condutas é um dos grandes problemas. Há dinheiro para reabilitar as condutas?

O Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais (PENSAARP 2030) prevê um investimento de 5,5 mil milhões de euros, metade dos quais são para reabilitar infraestruturas. Se esquecermos a reabilitação, é muito mais barato – só precisamos de 2 mil milhões –, mas comete‑se um erro tremendo. É preciso reduzir as perdas. Como? A boa solução não é andar a tapar, sempre que aparece um buraco: é ter uma gestão patrimonial das infraestruturas. Tem de se renovar a infraestrutura a um ritmo que garanta que está sempre boa. Lisboa tem 1400 quilómetros de tubos de água enterrados. Se renovarmos 1%, são 14 quilómetros de rede por ano. Se for 2%, daqui a 50 anos, há uma rede nova. As infraestruturas duram entre 50 e 100 anos. Uma política de renovação de 1% a 2% garante que o sistema está sempre em condições. Se não houver, como tem acontecido, surgem problemas e colapsos.

A reabilitação está prevista no plano. E na prática?

Na prática, já está a acontecer nos melhores operadores. Não na maioria dos 275 que existem. A EPAL investe fortemente há uns 15 anos. Nas tubagens, perde‑se água. Não são sistemas completamente estanques. Perder 20% é muito diferente de perder 10 por cento. É um volume muito grande. Qualquer operador tem de se preocupar em ter um sistema eficiente do ponto de vista hídrico, com perdas baixas. As perdas nunca são 0%, mas, se atingimos 10%, já é muito bom, como a EPAL. A média nacional está nos 30 por cento. Se todos os operadores conseguissem passar para 10%, tínhamos 20% de redução de perdas de água que não servem para coisa nenhuma. É importantíssimo atuar nas infraestruturas. O País tem quase cem mil quilómetros de redes. Tem um impacto muito forte atuarmos ou não sobre as perdas. Temos de renovar a infraestrutura, e isso custa dinheiro. A população não está disponível para pagar? É um problema cultural. A tarifa, se juntarmos água e saneamento, em média, é de 2,50 euros, o que dá uma conta de 15 ou 20 euros.

É muito? É pouco? 

As pessoas tendem a dizer que a água está cara, é o conceito típico. A água está barata. O tarifário cobre os custos ou não? Não é suposto ser um negócio, no sentido de ter uma grande rentabilidade, mas é suposto que gere receitas para cobrir os custos. Se o operador receber as receitas para cobrir os custos, continua a ter uma atividade equilibrada do ponto de vista económico‑financeiro. Optar por tarifários mais baixos é o que acontece em muitos operadores, por razões meramente políticas e de procura da simpatia da população. Obviamente que os custos estão a aumentar e o preço da água tem de ir aumentando e pagando o seu custo efetivo. O metro cúbico custa 2,50 euros. Em muitos casos, até se paga menos. Mas, e o valor da água? Porque aquele metro cúbico evitou que, em vossa casa, houvesse doenças por via hídrica, que muitas populações estejam na pobreza. Uma das razões da pobreza é a falta de serviços essenciais. Esse metro cúbico permitiu produzir atividades empresariais. Se não houver água, não há economia. A água vale muitíssimo mais. São valores intangíveis, mas andamos a discutir o valor dos 2,50 euros e a achar que é caro. A família gasta X de eletricidade, X de telecomunicações... O bem e o serviço mais essencial de todos, a água, é o mais barato. E achamos que é caro.

Mas há disparidades de tarifas no território. Há municípios muito baratos e outros que cobram muito. 

Estamos a falar de serviços locais. Se há regiões com muita água e regiões com pouca, quer dizer que, na primeira, se produz água mais barata do que na segunda, onde é mais difícil produzir. Dá os sinais económicos certos, desde que dentro da razoabilidade, daquilo que é a capacidade de uma família pagar os serviços. Há um indicador da ERSAR que mede todos os anos, em todos os operadores, a acessibilidade económica da população. O mapa da acessibilidade económica está verde. Praticamente não há exceção no País. Em média, as pessoas podem pagar. Não quer dizer que os 10% de população muito pobre possam. Já ouvi dizer que temos a água mais cara da Europa. Não faz sentido. Há municípios com valores mais elevados e outros mais baixos. Vamos ver o que estão a fazer e a oferecer. Porque se não faço investimentos, obviamente, sou barato. Qual é a dúvida?

Em Portugal, e é uma orientação do regulador, a tarifa não deve passar um determinado valor do rendimento médio familiar. Esse valor é muito mais baixo do que o definido pela OCDE, que recomenda 5 por cento. Recomendamos entre 1% e 2%, ou seja, somos conservadores. E bem. 

Porque não é a tarifa social automática, mas voluntária? 

Defendo inteiramente que seja de aplicação universal e automática. As famílias com rendimento abaixo de certo valor, calculado de determinada maneira, devem ter acesso à tarifa social. Não pagam a componente fixa do tarifário, e dos quatro blocos progressivos, pagam só o primeiro, que é o mais barato. Mas, entre uma recomendação do regulador, em 2009, e a prática generalizada, e depois aparecer na legislação, vai um tempo. Essas famílias devem ter acesso automático ao sistema e pagar a tarifa social. É simples, mas difícil de implementar. Tudo isto são anos de evolução.

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